PARTE I
Hoje me pareceu bem escrever minha história. Ou melhor dizendo, um pedaço dela. Digo isto porque normalmente as pessoas começam dizendo quando nasceram, o que fizeram, o que estudaram, quantos filhos tiveram e o legado que deixou. A verdade é que pouco importa estas informações diante do que tenho a narrar. Aliás, pouco importa até de que lugar e em que século lhes escrevo isto.
O que tenho a lhes contar, pouco provável que acreditareis. De certo, nem eu acreditaria se alguém me contasse, mas não posso deixar isto morrer comigo.
Era um dia comum. Eu, Ateóstico, sentei-me no sofá da sala após um dia cansado de trabalho a beber uma cerveja. Liguei a TV para assistir o noticiário, coisas estas que eu sempre eu fazia. No noticiário, nada de novo: tragédias atrás de tragédias, e então pensei alto: “Mas só tem desgraça neste mundo? E há quem acredite em Deus. Se Deus existe, certamente ele é injusto!”. De repente, ouço um barulho vindo da minha cozinha. Foi um barulho alto. Isto me causou estranheza pelo fato de morar sozinho. Alguém poderia ter invadido minha casa, imaginei eu. Então peguei um objeto da sala e me dirigi cuidadosamente para a cozinha quando vejo uma mulher sentada na cadeira da mesa de jantar e o seu olhar veio de encontro ao meu. Sua face era harmoniosa e seus gestos de quem estivesse muito tranquila. Ela me olhou serena sem esboçar nenhum tipo de reação. Seu cabelo preso como um coque e vestia um vestido que não me parecia muito moderno ou comum. Ao mesmo tempo que respirei aliviado por não se tratar de um delinquente, fui tomado de temor e confusão.
“Quem é você?! Por onde entrou?” Perguntei, sem saber o que falar.
“Sou a senhora Reflexão.” Disse ela, na mesma serenidade com a que encontrei.
“O que?!?”, “Sou a senhora Reflexão” Repetiu ela.
Nome estranho para uma pessoa, pensei. Mas confuso, insisti: “E como entrou aqui?”
“A verdade é que sempre estou com você. Eu fico na sua mente. Mas me aprouve me materializar a ti.” Respondeu ela levantando-se e se dirigindo ao bebedor de água.
Só poderia estar louco... Não tinha nem bebido ainda a cerveja, para sequer supor que estivesse bêbado. Que tipo de explicação daria a isto? Até hoje me perguntou se foi uma variação de minha mente. Mas ainda que fosse, ela foi real, pois causou em mim uma nova percepção da realidade.
Extasiado, sentei-me no chão e larguei o objeto com que segurava firmemente. Minhas pernas estavam moles. Minha mente confusa. Ela era real. Ela estava ali.
Ela aproximou-se de mim, agachou-se e me ofereceu água com um leve sorriso, quase imperceptível. Eu aceitei. Ela, levantando-se, começou a falar: “Por que te espantas? Ao acaso, tu não tens uma percepção materialista das coisas? Pois bem, eis-me aqui.”
Vendo que era uma mulher na minha frente, inegavelmente, o meu subconsciente sugeriu que depois poderia compreender o que efetivamente aconteceu. Me permitir mergulhar naquela experiência, agora, sem temor. Não me preocupei mais como ou de que forma, apenas me permiti.
E com isso começa a história que quero lhes contar.
PARTE II
Ateóstico – Acho meio estranho a própria reflexão se materializar. A reflexão não me parece uma virtude pela qual se tornaria uma personagem. Talvez ficasse menos impactado tratando-se da sabedoria, da paciência, da justiça talvez... A reflexão só é a reflexão. Ela está no ser de quem reflete...
Reflexão – Dizes bem quando dizes que não sou uma virtude, porque não o sou, mas sou uma ação. Não necessariamente caminho com a sabedoria ou com a justiça, mas todos que a possuem, me detém.
Ateóstico – Mas como posso refletir, se você está no meu ser? Certamente o que me disser, eu mesmo estou falando a mim.
Reflexão – Ainda que esteja no seu ser, tenho o poder de confrontar. A minha beleza está justamente nisso. Normalmente as pessoas não refletem sobre as coisas que elas mesmas acreditam, ou acham que acreditam. Elas detém muitas certezas, mas não refletem sobre as idéias que elas mesmas construíram.
Ateóstico – Tenho que concordar com você: as pessoas não param pra refletir! Tenho a felicidade de dizer que deste mal não sofro. Tenho a mente livre!
Reflexão – O que tu determinas por mente livre?
Ateóstico – Eu não tenho a mente presa a coisas que não existem, dogmas, divindades ou superstições.
Reflexão – Se tu tens isto por mente livre, não só a tua, como a de ninguém é livre.
Ateóstico – Posso falar por mim que a minha é.
Reflexão – Neste sentido, as coisas não são tão simples como aparentam ser... Existem leis intrínsecas à ti, que formam seu eu, baseadas em toda sua vivência ao longo de toda tua história. A educação recebida no seio familiar, teu contexto social, econômico, religioso-cultural, traumas, dentre tantas outras variantes que formaram quem tu és hoje. Estas coisas influenciaram a tua moral e ética, bem como direcionam tuas escolhas e o que você tem por verdade.
Ateóstico – Não nego que estes fatores influenciam meu eu, no entanto, não necessariamente sou da forma como me formaram. Nasci em um ambiente religioso. Minha família era cristã. Hoje sou ateu e agnóstico. Isso, por si só, já demonstra que minha cabeça não é bem como modularam.
Reflexão – Quando nos desprendemos de alguns dogmas e crenças, é porque nos amarramos à outros.
Ateóstico – Eu só me desprendi deles, apenas.
Reflexão – Para nos desprender de algo, precisamos considerar que aquilo não nos é necessário ou que há uma percepção negativa. Se fostes educado de uma forma, e por alguma razão entendes que aquilo não faz mais parte de você, houve um fator para metanoia.
Ateóstico – Não foi um momento específico. Acho que eu já tinha esta percepção da realidade, mas não tinha amadurecimento suficiente para entender. Quando fui amadurecendo, fui entendendo que não fazia sentido pra mim.
Reflexão – Fazer sentido é algo bem interessante a se pensar... Para algo fazer sentido ao nosso entendimento, ele precisa passar pelo filtro das nossas premissas. E o ser humano tem muitas... Te aconselho à refletir sobre quais premissas tu assumiste ao longo de sua jornada e em que momento houve a metanoia.
Ateóstico – O que tu pretendes com isto?
Reflexão – Fazer tu refletires.
Ateóstico – E o que ganharei com isto?
Reflexão – A reflexão leva ao homem uma lapidação interna. Uma melhoria contínua de si, do pensamento e do entendimento. Quando o ser humano entende o que conhece e conhece o que entende, ele vai de encontro ao que é mais difícil de se alcançar: conhecer a si e o que lhe rodeia.
Ateóstico – Faz sentido. Mas a questão das premissas...
Reflexão – Entendo o teu ponto. Mas te darei um exemplo bem simples com uma pergunta: Eu existo para você?
Ateóstico – Sério que me fazes esta pergunta? Sabes bem que tu existes na minha mente. Na minha imaginação, no entanto tu não existes na realidade.
Reflexão – Como, pois, tu determinas o que não existe?
Ateóstico – Simples: tudo aquilo que foge do mundo material. Coisas que não se podem explicar cientificamente e não se podem testar. Coisas que não tem evidências palatáveis, mas trabalham com idéias imaginárias e limitadas a uma experiência de um ou outro indivíduo.
Reflexão – Pronto, já me respondeste com uma premissa.
[...] Tem continuação
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